Conforme nos conta o próprio Caetano Veloso (no livro "Sobre As Letras", organizado por Eucanaã Ferras, pela Cia. Das Letras, 2003:
- "Compus para Bethania gravar. Eu estava em Roma quando um dia acordei e vi os carros empoeirados, todos cobertos de areia. Perguntei: 'Gente, o que tem nesses carros aí?'. Uns italianos, amigos meus, responderam: 'isso é areia que vem do deserto do Saara, que o vento traz'. Com essa imagem, comecei imediatamente a compor a música. A letra fala em Gita Gogóia, porque a letra de Gita diz 'eu sou, eu sou, eu sou'... e porque a canção 'Fruta Gogóia' também se estrutura do mesmo modo eu sou, eu sou, eu sou'. A letra é meio contra o Paulo Francis, uma resposta àquele estilo de gente que queria desrespeitar o que era brasileiro, o que era baiano, a contracultura, a cultura pop, todo um conjunto de coisas que um certo charme jornalístico, tipo Tom Wolf, detestava e agredia."
Esta é mais uma canção com a marca e o talento do genial baiano Caetano Veloso. A poética e inteligência da letra embora um pouco complexa, merece um esclarecimento. Em especial o verso "Sou Gita Gogóia, seu olho me olha, mas não me pode alcançar". Trata-se de uma figura mítica e fictícia criada pelo compositor, talvez uma referência ou uma junção da "Gita" de Raul Seixas e Gogóia da música "Fruta Gogóia" do álbum "A Todo Vapor" de Gal Costa. Para muitos a "Gita" de Raul nos remete ao livro sagrado do hinduísmo Mahabarata onde consta o "Bhagavad Gita" ("A Canção do Senhor"), um hino, um canto sagrado. Conforme Gal diz na canção "Eu sou uma fruta gogóia, Eu sou uma moça". Segundo os dicionários gogóia é o nome de uma espécie de melancia de praia. Da junção dos termos infere-se que o compositor emprestou à expressão "Gita Gogóia" um sentido sagrado e profano, quem sabe a personificação da sagrada exuberância feminina, com ênfase ao lado sensual e sexual.
Mas a letra de "Reconvexo", sem sombra de dúvidas, revela um orgulho de ser brasileiro, de ser baiano, de ser uma parte do mundo que é "out", e que, pelo mesmo motivo, é "in". A música faz muitas referências baianas (a novena de dona Canô, a elegância sutil de Bobô, o Olodum balançando o Pelô), brasileiras (o mendigo Joãozinho/Beija Flor -- em referência ao célebre enredo "ratos e urubus -- larguem minha fantasia" de Joãozinho Trinta na Beija-Flor de 1989, a destemida Iara da Amazônia), e universais (A risada de Andy Warhol, o suingue do Francês da Guiana Henri Salvador, o americano negro com brinco de outro na orelha).
Álbum: Minha História
Gravadora: Universal Music (1993)
RECONVEXO
De: Caetano Veloso
Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara
Água e folha da Amazônia
Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
Você não me pega, você nem chega a me ver
Meu som te cega, careta, quem é você?
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô
E que não riu com a risada de Andy Warhol
Que não, que não, e nem disse que não
Eu sou o preto norte-americano forte
Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a flor da primeira música a mais velha
Mais nova espada e seu corte
Eu sou o cheiro dos livros desesperados, sou Gitá gogoya
Seu olho me olha, mas não me pode alcançar
Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor
Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo
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